sábado, 12 de março de 2011

O estarrecedor brado do Bicho

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Necessária inteligência para jogar, sabedoria popular da interpretação dos sonhos também ajuda. Quem é burro no pensar e porco nas ideias nada arruma. Quem acorda com a cantoria do galo, recorda o sonho e realiza as associações com a esperteza do macaco, atento aos detalhes como o cachorro e tudo anota, sai para jogar com a sagacidade do gato e a ligeireza do coelho. Sorrateiro como a cobra ao apontador chega e espera espantar o tempo de vaca magra. Na fé do carneiro que quer agradar a sua cabra, sonha com a bolada robusta como o elefante e forte tal qual o cavalo, para assim da elegância de um pavão vestir-se para sua borboleta amada. A hora do resultado avança na velocidade do camelo, com o olhar perscrutador da águia confere o seu jogo. Deu avestruz na cabeça e a bolada do tamanho de um urso garantida. Agora poderá convidá-la para aquele jantar à luz de vela com carne de peru e vinho, porque ele não está de bobeira, é casca grossa como couro de jacaré e arisco como o tigre. Veado que não é, pretende devorar o seu desejo com a volúpia do touro e a ferocidade do leão.

Babilônia-Bicho
Bicho-Babilônia
Para sempre irmanados neste chão

O poema dos bichos e do bicho
começa versando para
introduzir o seu protagonista.

Da antiga casa 9 da Vila Catarina, tradicional ponto do jogo de bicho da Tijuca à loja do Seu Heitor na galeria do Jamaica, bem ao lado da garagem do prédio, ou subversivamente conhecida como o beco da Babilônia, ponto de consumo de drogas da rua.

Seu Heitor, sapato de graxa impecável, meias finas, calças de tergal ou linho, camisas de botão quadriculadas, as cores sempre sóbrias, cordão pendurado no pescoço, relógio no pulso, anéis nos dedos, cabelo estático penteado para trás e a inseparável capanga com o berro (sempre disseram que ele andava armado). Visual básico do bicheiro, do macho e do malandro carioca.

Inseparável dupla, Heitor e Arlindo, de passados obscuros, histórias veladas de um tempo que o bicho era perseguido com rigor. Arlindo, seria o nome ironia com o senhor? Pouco falava a exótica figura do corcunda da Babilônia. Seus espirros sequenciais ressoavam como explosões de granadas e ganhava esporros ensandecidos de Seu Heitor que estremeciam a rua, do ponto oposto da Babilônia escutava-se a voracidade das palavras do chefe. Arlindo era o homem que controlava a verba, quem quisesse trocar dinheiro era com ele que deveria se dirigir, para pegar os prêmios também. Acrescentavam que foi uma pessoa de extrema maldade no passado, porém isso sempre dito entre os dentes por àqueles que se atreviam a falar. Enquanto Heitor mantinha o impecável fusca parado sempre no mesmo lugar, na vaga cativa à frente de sua loja. Ai daquele que estacionasse o carro no lugar reservado para ele, algo que somente acontecia com quem não era da rua. Entretanto, algo quase impossível de acontecer, pois Heitor chegava por volta das seis da manhã e somente se retirava para sua casa após às 19h, de segunda a sábado. Aliás, onde morava o Seu Heitor?

De hábitos imutáveis, de um tempo que telefone fixo era objeto de poucos, por isso o liberava para quem precisasse telefonar. Condição jamais permitida, friso de proibição extrema, nos minutos antecessores às 14h e 18h, horários que recebia as ligações informando os resultados a serem divulgados.

Respeitado por todos, temidos por nós, os menores, no máximo um breve cumprimento e a voz autoritária, rascante como a mais afiada navalha detonando o brado estarrecedor que o consagrou: “Olha essa bola aí, porra!” Bola de futebol que batesse no seu carro era motivo para encerrar de forma imediata a peleja. Ninguém possuía sobre nós tamanho poder persuasivo para suspender o bate-bola sagrado.

Passou-se o tempo, Cronos determinando sua marcha e o destino levando os nossos entes para outros firmamentos. Seu Heitor um dia pegou a derradeira estrada e rumou para esses distantes algures formados de plenos nenhuns que todos iremos, mas nunca saberemos quando lá chegaremos. Arlindo, companheiro de décadas de jornada, seguiu a inevitável trajetória logo em seguida. A loja por anos permaneceu fechada, como se não desejando outras vivências, novos viventes.

Hoje, quando ali passo e paro não consigo registrar o que há de novo. Fixo-me os olhos para o interior da loja e vejo os dois companheiros. Seu Heitor sentado lateralmente à mesa, braço direito sobre a cadeira apoiando a cabeça, o braço esquerdo sobre a mesa. Arlindo em pé atrás do balcão no fundo da loja, envolvido pela imensa e contínua papelada que sempre o acompanhou. Faço o mesmo cumprimento para os dois que reproduzi durante vinte e tantos anos e sigo a minha história. O jogo de bicho continua na rua e o Seu Heitor, ao lado do fiel Arlindo, reconfigurados em desconhecidas matérias imperceptíveis para muitos, mantêm as suas babilônicas rotinas. Para todo o sempre.


Ricardo Riso
10-11/03/2011

Um comentário:

  1. Manel,

    fiz uma rápida pesquisar para saber quais eram os bichos do jogo e fazer a parte inicial do poema. Achei um site com informações breves, mas que expõe as primeiras manchetes jornalísticas sobre o jogo. Interessante que foi feita uma enganosa propaganda de que seria uma atividade para incentivar a ida ao jardim zoológico.
    A adesão popular foi imediata como comprovam o rápido aumento dos valores dos prêmios, o que também chamou a atenção da imprensa que passou a caracterizar a atividade como mais um jogo, por isso proibido por lei (1892).
    Engraçado notar que desde sempre o jogo esteve associado ao alto escalão politico-social da cidade, algo que vivenciamos nos anos1980 quando o então prefeito Marcelo Alencar recebeu toda a cúpula do Bicho na prefeitura e causou "escândalo".
    Sei que o jogo do bicho sofreu forte repressão nas duas ditaduras (Vargas e 1964). Como isso aconteceu na Babilônia, não sei ao certo. Nesse sentido, recordo-me, ao voltar da escola, de uma ocasião que minha mãe disse que a polícia havia prendido todo mundo. Na época, as apontadoras eram duas senhoras gordonas que ficavam sentadas na saída da galeria onde tinha o salão da minha tia. É o único caso que me lembro.
    Acho importante você ter citado o fato de todas as pessoas que trabalhavam no jogo serem extremamente educadas com os moradores da vila. Eu também não me recordo de nenhum atrito envolvendo-os.
    Abraços,
    Ricardo, o Velho

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