Mais uma do Velho! Bom texto sobre o nosso saudoso Colibri.
Faceiro, serelepe, esguio ludopedista deste chão. À moda oitentista, o kichute impecável envolvendo as canelas. Futebol simples jogado com seriedade, por que para ele todo jogo era de campeonato. Do golzinho babilônico, a seriedade aliada à simplicidade e à sensibilidade para nos momentos de tensão aos ares a bola mandar. Precisão jamais vista, a esfera disputada por nós caprichosamente presa entre os galhos das árvores. Vários conflitos sangrentos entre os disputantes foram evitados com esse gesto antibeligerante, rápido e certeiro. Judicativo? Não sei dizer, talvez o dom natural do aspirante à atleta acompanhado do formato peculiar do pisante preferido a precisão justifiquem. A inesperada trégua das nossas batalhas futebolísticas transferia todas as reclamações para sua pessoa, mas rijo as recebia com uma indiferença superior e um definitivo, seco e direto foda-se.
É verdade que este poema quer recriar o antanho. Falo de um certo Pedro, também Paulo, da aristocrática família Braga, filho de Pepa e da Paula, primo do Babão e da Mônica, sobrinho da Rosa, neto de Valdir e Edina, descendente do mítico João Pavão Braga. Vila Catarina, Babilônia ancestral.
1974, ano do seu alvorecer. Vasco campeão nacional, Salgueiro**,escola campeã do carnaval carioca com o enredo “Rei de França na Ilha da Assombração”, escola de seu digníssimo pai, tio de todos nós, Brasil, sem Pelé, foi apresentado ao futebol-total e passeia em um carrosel holandês, enquanto as trevas de um general imposto aterrorizavam o país.
Teriam esses acontecimentos (ou se preferirem os esotéricos, essa conjunção astral – ou melhor seria conspiração astral) influenciados Pedro Paulo, atestando o apreço pelo ar, elemento da natureza, e a vocação para o pensamento e as suas indagações ontológicas e metafísicas, questões essas que atônitos nos deixavam? Afinal, ostentar dois nomes em uma mesma pessoa já caracteriza a inquietação do ser e um desejo incontrolável de amplidão, de alguém que não se contenta em ser apenas um.
Oh, incautos meninos de tenra vivência plena de ininterruptas erupções hormonais, distante estavam das reflexões deste Paulo, antes e também Pedro, de sapiência desmedida, incompreendida por todos, metamorfoseou-se em Colibri e com isso a maturidade enigmática foi atingida.
Diferindo de Dadá, o Maravilha, para Colibri não eram apenas três míseros seres ou objetos que paravam no ar. Recordando os postulados pelo folclórico craque de tempos idos: o colibri, o helicóptero e o Dadá. A amplidão e o inusitado do pensamento de Colibri quando a público eram revelados a todos suspendiam. Reafirmo todos, de um pequeno grupo de colegas a maior das plateias caso ele se pronunciasse.
Sempre propondo a transgressão à ordem estabelecida e procurando estabelecer novas fronteiras para a rigidez incômoda do cotidiano, Colibri, convicto, dizia: “Alemanha é time”; e exigia a inscrição da Alemanha em campeonatos de clubes de futebol. Certamente pensando na melhor qualidade que a inclusão do selecionado alemão traria para a competição, e como cruz-maltino fiel, adoraria ver o seu time sobrepujar os alemães. Uma vitória dada como tranquila para ele.
Subverter a língua, ressemantinzando palavras e alterando seus significados também era uma das áreas que a genialidade de Colibri navegava com destemor. Legítimo seguidor do brilhante intelectual do século XX, Roland Barthes, tal como este, Colibri combatia o fascismo da língua, “pois, o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Ou seja, o subversivo Colibri trapaceava a língua conforme sugeria Barthes, “a trapaça salutar da língua, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder”. Um exemplo claro disso foi o clássico oxímoro para nos convidar a então loja da Adidas para “comprar cocada de graça”. Para além do desarranjo linguístico, Colibri revelava um desenfreado humanismo, diria de caráter anárquico, contrário ao capitalismo selvagem que até hoje vivenciamos e sempre justificado e suavizado pelos economistas.
Colibri de olhar visionário, talvez o nosso maior pecado e injustiça contra essa mente brilhante. Aqui peço o perdão ao Divino e a você em nome de todos os seus parceiros de infância, nos acertamos com a História e realizamos a revisão necessária e justa. Em pleno raiar dos anos 1990, a mente magnânima deste vate babilônico, borbulhava em lucubração enquanto discutíamos a realização do segundo Rock in Rio e a interdição do palco maior do futebol, o Maracanã, para o evento de música. Eis que do nada, algo próximo da excelência do Criador ao dar à luz ao cosmos, o pensamento de Colibri alçando voos por firmamentos em tempo algum visualizados por nós, já vislumbrando que a conectividade intensa entre as pessoas se aproximaria em poucos anos, tudo estaria à distância de um clique de mouse e as fronteiras que seriam finalmente abolidas em um mundo completamente globalizado, Colibri propõe, em uma genialidade vanguardista de marketing, a realização do Rock in Rio no Morumbi. Óbvio que foi desacreditado e ridicularizado por nós, seres limitados, normais, medíocres, reles soldadinhos babilônicos destinados aos trabalhos braçais e nunca preparados para o ato de pensar e conduzir os rumos de seus pares. Afinal, como poderia o Rock in Rio (Rio de Rio de Janeiro) ser realizado no Morumbi?!? Em São Paulo?!? Isso soou como uma heresia para nós, inquisidores da Razão.
Outra digna de rememoração desse Nostradamus babilônico e demonstrando sua sapiência e versatilidade nos assuntos pertinentes ao homem e à condição de ser físico ou espiritual, fez com que a consciência ambiental de Colibri florescesse. Ele pressentiu as consequências nefastas do homem ao meio ambiente e as alterações climáticas que viriam dessas ações, profetizou uma Copa do Mundo no Brasil (quando a ideia de uma Copa realizada aqui era tratada como delírio) com final no Maracanã sob 40ºC, temperatura impensável na virada dos 1980/1990, mas plenamente possível na época atual e provável temperatura da grande finalíssima que acontecerá em julho de 2014. No Maracanã.
A história da humanidade é repleta de registros da incompreensão e da reação furiosa da sociedade diante dos gênios. Sócrates e Galileu Galilei são exemplos notórios e vítimas desse histórico de avaliações falhas dos humanos.
Talvez o tenhamos prendido no Fiat abandonado tempos depois por causa dessas ofensas assim consideradas, sobretudo à cidade e a um inadmissível verão em pleno inverno carioca. Certo que a primeira prisão foi realizada com sucesso. A segunda foi um acontecimento especial e impõe a sua recordação. Sem sombra de dúvidas, esse foi o maior ato de bravura que a Babilônia teve, tem e terá notícia. Colibri enfrentou mais de uma dezena de garotos enfurecidos e não se submeteu à vontade da maioria. Resistiu a cruéis torturas com uma força descomunal, desconhecida de todos e incompatível ao seu corpo franzino. Lutou como um herói saído da mitologia grega, sólido, de energia inesgotável e não foi preso ao Fiat. Foi uma batalha épica em uma tarde ensolarada, exemplo de perseverança e fé na capacidade do homem frente às adversidades da vida. Colibri venceu “a mãe de todas as batalhas” deste chão e que por justiça e merecimento se encontra devidamente registrada nos anais da Babilônia.
Entretanto, é mister recordar a sua mais insólita e memorável afirmação, imortalizada, pendurada como um quadro na parede da memória de cada um de nós. Em um desses jogos de tabuleiro com dados – ludo, war, banco imobiliário, não lembro –, comuns nos anos 1980, na casa do Fábio, que ainda não tinha virado urso, Colibri estava prestes a sofrer uma acachapante derrota. Diante das gozações de todos e da comemoração da inevitável perda, Colibri então foi dominado pelo furor, pressionado por uma resposta à altura que o momento exigia, reagiu com a fugacidade de um relâmpago, e para o seu oponente com a ênfase que sempre o acompanhou, vaticinou palavras estrondorosas como um trovão a estremecer o firmamento: “Tomara que tire zero”!
O impacto dessa declaração foi similar a uma hecatombe nuclear, essas quatro palavras foram mais devastadoras que qualquer tsunami já registrado na História. Somente ele, da sapiência do seu Olimpo, ou seria de uma mente privilegiada oriunda de outra galáxia (Orion, talvez?), poderia proferir uma declaração tão insólita quanto a frase supracitada. Depois disso não houve mais jogo, as gargalhadas tornaram-se incontroláveis. Por sorte, ninguém se feriu ou morreu de ataque cardíaco (ainda bem que todos eram jovens). Mas o que nenhum de nós atentou à época foi a perspicácia do seu ato. Como exímio estrategista que era, livrou-se da humilhante derrota e marcou definitivamente o seu lugar entre as mais ilustres personalidades da gloriosa História da Babilônia, tornando-se um incontestável imortal deste chão.
Todavia, se Colibri afirmou isso foi por que a possibilidade era concreta, certeza disso tenho eu. Por várias vezes tentamos chegar ao zero com um dado rigorosamente numerado de um a seis. O insucesso foi a tônica dessas tentativas frustradas. Por outro lado, Colibri nunca revelou se já conseguiu tirar zero no dado. Fato que ainda merece especulações várias, sendo este um mistério merecedor de aprofundados estudos de matemáticos, físicos, químicos e demais caçadores de mitos. Um mistério até hoje insolúvel, como assim os são as construções das grandes pirâmides do Egito, o exato local de Atlântida, as posições das pedras de Stonehenge, as linhas de Nazca e as enigmáticas estátuas enfileiradas da Ilha de Páscoa.
Por causa de tudo que foi exposto acima e de incontáveis feitos fantásticos aqui não registrados, mas não menos espetaculares dos narrados, aprendi com o tempo a não duvidar de Colibri, por isso desconfio que o zero no dado para ele seja uma realidade e que saiba desvendar “nas paredes da pedra encantada/ os segredos talhados por Sumé”, assim cantados por Zé Ramalho.
Bom, passados mais de vinte anos, às vezes deparo-me nessa vã tentativa. O melhor a fazer é por aqui encerrar estas linhas sobre este apóstolo babilônico, um certo Pedro, também Paulo, o nosso Colibri, tão-somente...
Ricardo Riso